1980/1981 – Into The Heart

Páginas 111 a 123

Adam: Em uma parte dessa turnê, fizemos uma pausa no Caribe e ficamos na casa do Chris Blackwell. Aparentemente era um “feriado de trabalho”, embora não soubesse ao certo que trabalho é que foi feito. Gravamos um single, ‘Fire’ com o Steve Lillywhite. Era uma música nova que tinha uma boa aceitação ao vivo, embora, como de costume, a letra só tivesse ficado pronta na gravação final. Acho que só passamos um dia no estúdio. O tempo estava muito bom para estarmos em estúdio gravando! De certo modo, foram as primeiras férias de verão. Me fazia lembrar aquelas fotografias de quando os Beatles estiveram no Caribe, do tipo “rapazes fazem esqui aquático pela primeira vez”. Era essa a idéia, mas acabou não se concretizando. Acho que o Bono quase afundou o barco. Sei que esteve envolvido em um incidente qualquer com um barco – acho que ficou preso em um banco de areia.

Bono: Já peguei emprestado muitos barcos e gosto de pensar que sempre os devolvi. Mas os barcos com isolamento térmico são uma especialidade. Nunca tinha estado em uma água sem que ela estivesse com a temperatura abaixo de zero. Lembro do azul turquesa do céu e do mar. Estávamos lá com as nossas namoradas e parecíamos crianças brincando na areia e correndo de um lado para o outro. Parecia que não havia mais ninguém no mundo que nos interessasse. Éramos uma comunidade pequena, mas muito unida. Foi mesmo muito divertido.

Larry: Foi um lugar muito especial. Estava lá a Ali, cara-metade do Bono, a Alislinn O’Sullivan, namorada do Edge, que mais tarde se tornou esposa dele, e a minha namorada Ann. Conheci a Ann no primeiro ano na Mount Temple. Ela era a garota popular da turma e eu o garoto carrancudo que ficava encostado nas paredes. Foi uma daquelas situações estranhas. Éramos o oposto um do outro, mas, mesmo assim, nos demos bem. Tornamo-nos amigos. Era tudo muito inocente. Os meus pais costumavam me dizer: “Não acha que é muito novo para ter uma namorada?” Para mim era perfeitamente normal. Viajar com a banda era uma faca de dois gumes. Por um lado eu estava vivendo um sonho de qualquer músico. Mas por outro, tinha saudades da Ann e do que restava da minha família. O que é estranho, porque depois que minha mãe morreu, eu e meu pai nunca nos falamos muito. Já tínhamos passado por muita coisa e muitas coisas ficaram por dizer. Foi cada um para o seu mundo e só muitos anos mais tarde é que restabelecemos contato. Apesar de tudo, sentia falta dele e dos ocasionais debates, acessos e discussões.

Bono: ‘Fire’ não foi uma música muito boa. Sempre tive esperança de que a poderíamos compensar à medida que fossemos avançando, mas, por vezes, não conseguimos, e ela acabou sendo um exemplo disso. Quando se está em um lugar como Nassau, não há muita vontade para trabalhar. Percebemos então, porque é que os grandes grupos fazem discos que não valem nada quando vão gravar lá – quem é que quer ir para Bahamas e ficar fechado em um estúdio?

Edge: Não me recordo muito bem das sessões. Mas lembro bem de Bahamas, por isso, deve estar tudo explicado. ‘Fire’ foi uma daquelas músicas que depositamos muita esperança, pois pensávamos que era inovadora e diferente, com efeitos de eco sendo usados de uma forma nova. O problema é que era grande no potencial, mas pouco grandiosa de conteúdo. Entretanto, conseguiu nos colocar no Top Of The Pops no Reino Unido pela primeira vez. Esse era o programa que assistíamos religiosamente durante anos. E finalmente chegar ao estúdio para poder ver o resultado foi tipo: “É só isso?” Foi tudo muito bem organizado, mas não tinha nada de sagrado. Estava um ponto acima do Youngline em termos de produção. Mas as bandas davam todo o seu máximo. Era como se aquilo fosse um Coliseu e nós fossemos os gladiadores. Vamos lá e temos que dar o nosso melhor. E nós fomos terrivelmente maus. Fomos a única banda que tocou no Top Of the Pops e cujo o single baixou de posição na semana seguinte.

Bono: Nós não nos misturávamos muito com as estrelas da América. Talvez tivesse ido alguém dos Blondie e do Talking Heads no Ritz em Nova York. O Joey Ramone também deve ter ido lá. Mas depois, em um show no Hammersmith Palais em Londres, conhecemos o Bruce Springsteen e o Pete Townshend. Foi um momento memorável. O Springsteen encheu minha cabeça com imagens sobre a América, sobre tudo de New Jersey, a linha da costa, Atlantic City, a América de diversões e das ruas. O meu irmão tinha trazido para casa The Wild, The Innocent and The E. Street Shuffle e colocou para eu ouvir quando tinha 15 anos. Nessa época, eu não me interessava por esse tipo de bandas, não me interessava mesmo, mas acabaram me cativando. E depois, claro, achávamos que o Pete Townshend tinha escrito o livro, porque o U2 queria ser o The Who. Nós não queríamos ser os Beatles nem os Stones. Não queríamos ser nenhuma outra banda. Mas se tivéssemos escolhido uma banda, teria sido o The Who. Por isso, nós estarmos com esses dois super heróis, sem nenhuma pressa, foi muito bom. O Bruce Springsteen é uma lição de modéstia em relação à forma como se comporta em público.

Edge: Não conseguíamos acreditar que esses dois tivessem entrado no nosso camarim. Foi fascinante. Foram as primeiras estrelas de verdade que conhecemos. O Pete Townshed era uma pessoa muito especial para nós. Lembro de ter feito um comentário estúpido tipo: “Se um dia conseguisse escrever uma música tão poderosa como ‘My Generation’, me daria por feliz. É essa minha ambição na vida. Isso ia significar muito para mim!” Ele virou e me disse: “E olha que também ganharia uma fortuna com isso colega.” Essa era a faceta de humor sarcástico do Pete. Ele era muito amável. Fazia sempre tudo o que podia para nos sentirmos bem. Sempre lembro bem disso – ele não precisava dizer nada. Estava entusiasmado com a nossa banda e só queria que soubéssemos que ele reconhecia que éramos um grupo especial. Depois disso, andamos triunfantes durante algumas semanas.

Larry: O Bruce se tornou uma pessoa muito importante para nós. Quando tínhamos que tomar decisões sobre os espaços que iríamos nos apresentar, recorríamos sempre a ele, para saber o que tinha feito na mesma situação. O Bruce tinha conquistado a América, com uma boa dose de estilo e classe. Embora musicalmente fossemos de tradições diferentes, havia uma ligação especial entre nós. Nós tínhamos a ambição de conseguir fazer o que ele fazia em palco. Os shows dele eram lendários. Aprendemos muito com ele.

Paul: Voltamos para a Irlanda no verão para começar a trabalhar no segundo álbum. Há uma frase muito conhecida no mundo da música que é: Leva-se uma vida inteira para compor o primeiro álbum e três ou quatro semanas para compor o segundo. Estávamos sob muita pressão.

Larry: Tínhamos acabado de chegar da turnê pelos Estados Unidos. Tudo corria sobre rodas e, de repente, era tempo de preparar o novo álbum. Estávamos começando mal. O dinheiro não era muito e não tínhamos lugar para ensaiar. Acabamos no local onde tudo começou, na Mount Temple. O Don Moxham nos ajudou e deixou usarmos uma sala da escola por um preço simbólico. Todos os dias encomendávamos comida chinesa para o almoço – desde essa época que não como comida chinesa. Toda essa experiência foi bastante contida, depois da euforia da turnê.

Adam: Pensava que era só ir lá e fazer que as coisas dessem resultados. A nossa forma de compor era trabalhosa e dispendiosa em termos de tempo, pois tocamos durante horas e depois passamos mais tempo ainda discutindo pormenores. Em seguida colocávamos a gravação para verificar se aquilo que tinha sido discutido afinal estava certo. Depois, aquele que tivesse o melhor argumento, era seguido por nós, e logo depois tocávamos durante mais meia hora até conseguir fazer igual. As coisas eram feitas um pouco com sorte, era tudo muito cansativo e não tínhamos tempo para fazer de forma adequada. Por isso, pegamos todas as idéias que tínhamos e as juntamos.

Edge: Com a confiança própria da juventude, acabamos a turnê, fomos para um local de ensaios e presumimos que as músicas fossem surgir por si. Trabalhamos inúmeras idéias muito rápido. Grande parte era improvisada. Pegamos um riff de guitarra ou uma parte da bateria e compúnhamos uma música em torno disso. Acabamos por ter muitas partes e o Bono ficou encarregado de encontrar melodias que lhes servisse de suporte. Entretanto, instalou-se o pânico quando percebemos que a data da gravação do álbum estava se aproximando e não havia letras para música nenhuma. Acho que só ficamos verdadeiramente conscientes da dimensão do problema quando entramos no estúdio. O Bono estava em pânico e, geralmente, lá em cima, em outra parte do prédio tentando desesperadamente organizar as idéias. Foram momentos bastante complicados. A Island Records estava por detrás da banda, mas, nessa fase, não vendemos muitos discos. Boy não chegou ao top 50 nem no Reino Unido nem nos Estados Unidos. Tínhamos feito um bom trabalho, mas não foi um grande fenômeno. Todos sabiam que o segundo álbum tinha que ser melhor. As sessões eram bastante penosas, sobretudo para o Bono. E em um momento de desespero, surgiu a letra de ‘Gloria’ – era mesmo isso que ele estava vivendo. Foi quase jornalístico, estávamos todos na mesma situação, completamente desesperados e só conseguíamos ver tudo desmoronando em nossa volta.

Bono: Estávamos ficando sem energia e sem entusiasmo pelo mundo. O Steve Lillywhite sempre estava dizendo: “Vai lá. Que duração tem a música, Bono? Tem três minutos, três minutos e meio? Você consegue escrever palavras suficientes para preencher esses três minutos e meio. Não é tanto assim, né? De quantas músicas precisamos? Só precisamos de onze.” Ele tinha razão. Mas eu estava sempre ali rabiscando. Acreditava – e ainda acredito - que a melhor forma de nos desprendermos, de forma criativa, espiritual e de todas as outras formas, é sendo verdadeiros. É algo muito difícil, sermos verdadeiros com a gente mesmo. E se não temos nada a dizer, essa deve ser a primeira frase da música: I’ve nothing to say (Eu não tenho nada para dizer). Comecei então escrevendo sobre isso. A música Gloria é sobre essa luta e a transformei num salmo: I try to stand up but I can’t find my feet. I try to speak up but only in you I’m complete: Gloria in te domine. Muito louco para alguém de 22 anos. Canto gregoriano misturado com esse salmo. Era uma música espiritual.

Mas isso não são músicas. Carl Jung fala de uma espécie de consciência partilhada, a inconsciência coletiva, imagens que todos temos de sonhos e que fazem de nós quem somos. E, quando não escrevemos, essas imagens vêm à superfície. E são coisas estranhas. Há uma música chamada ‘Rejoice ‘, que tem exatamente a mesma imagem que ‘I Will Follow’ – uma casa desmoronando. Considero bizarro ter escrito duas músicas usando essa mesma imagem. Tínhamos tocado ela duas vezes por noite e aqui está ela outra vez. It's falling, it's falling, the buildings are tumbling down. Inside a child on the ground says he'll do it again. É como um sonho que se repete. Analisando agora essas primeiras canções, onde a linguagem não é tão importante como estas imagens inconscientes, vejo que isso pode estar relacionado com uma certa falta de prudência. É o tipo de situação com a qual muita gente se identifica, mas não é algo intelectual.

Tomorrow foi inconsciente. Anos mais tarde percebi que era uma narrativa sobre o funeral da minha mãe. Don’t go to the door, there’s a black car outside. Devia estar me referindo ao carro fúnebre. São tudo divagações. Estou tentando simplesmente dizer a mim mesmo: “Ultrapasse isso!” Mas essas coisas que acontecem em nossas vidas, senão lidarmos com elas de forma adequada no momento, acaba arrumando um jeito de vir à superfície, encontrando fendas por onde possam emergir. ‘I Threw A Brick Through A Window’ é uma música sobre não gostarmos de nós. E vermos o nosso reflexo em uma janela e ter vontade de quebrá-la. Não sei de onde veio essa idéia. Tento não me dedicar a auto-repugnância, mas, de vez em quando, ela acaba vindo à tona. Para mim, a culpa é uma emoção completamente inútil. Cometemos um erro, tentamos retificá-lo, pedimos desculpas e seguimos em frente.

Larry: Tive grandes dificuldades na música ‘I Threw a Brick Through a Window’ por causa do tempo. Muitas vezes, depois de passarmos dias compondo e recompondo, gravando e regravando, era difícil manter o ritmo, e o fato de não usar um metrônomo não ajuda nada. As peças da bateria é que sofriam quando eu tocava com toda minha energia para tentar manter o ritmo. O meu despertar deu depois de um dia inteiro sem conseguir progredir na ‘I Threw A Brick’. Quando voltei ao estúdio no dia seguinte, o Edge tinha feito um arranjo de uma parte da bateria excelente. Fiquei puto por ele ter composto uma parte da bateria melhor do que eu. Era o empurrão que eu estava precisando.

Adam: Conseguimos tratar da parte musical, mas a pressão estava toda no Bono, pois tinha que pensar em alguma coisa para ensaiarmos. As suas capacidades estavam se esgotando. E nós não éramos suficientemente maduros nem sensatos para dizer: “Esperem, vamos parar um pouco. Fazemos uma pausa e depois tentamos fazer tudo como deve ser.” Estávamos todos enganados. Acreditamos que tínhamos todos que cumprir rigorosamente aquele plano de trabalho, com grande esforço da nossa parte.

Bono: Ainda não tínhamos acabado de fazer o álbum quando nos apresentamos no Slane Castle com o Thin Lizzy, o maior show ao ar livre na Irlanda. Decidimos então tocar pela primeira vez as canções novas que estávamos trabalhando. Mais ainda, decidimos que seriam as primeiras do show. Começamos tocando ‘Tomorrow’, acompanhada por uillen pipes (espécie de uma gaita de fole) – e fomos um desastre. Foi um verdadeiro fracasso.

Edge: Foi um dos nossos piores shows. Saímos do estúdio, de uma das experiências de gravação mais traumática das nossas vidas, e fomos direto ao show, sem tempo para ensaiar. Algumas músicas nunca tinham sido apresentadas ao vivo. Fomos mesmo um desastre. Para piorar ainda mais as coisas, tivemos alguns problemas técnicos com as guitarras e outros equipamentos. Chegamos a um momento em que tivemos que parar e depois começar tudo de novo.

Adam: Acho que foi uma tentativa de recriação do ambiente em que o Bono cantaria. De forma que para ajudá-lo a ultrapassar o bloqueio de escritor, achamos que ele iria se sentir melhor estando em frente a uma platéia. Desastre total. Mas nós éramos ingênuos e destemidos. Para nós tudo merecia uma tentativa e acho que, no final, isso será digno de elogio.

Bono: É um tema que se repete ao longo de toda a vida da banda. Estávamos constantemente em situações complicadas, para podermos descobrir uma forma de ultrapassá-las.

Larry: A gravação foi um trabalho duro. Também ocorreram algumas distrações provocadas pelas reuniões cristãs ao mesmo tempo. Algumas pessoas desses encontros diziam que devíamos desistir da banda e investir em algo que fosse espiritualmente mais instrutivo. O Edge, sobretudo, começou a questionar sobre o que andávamos fazendo. Eu achava que as reuniões estavam se tornando assustadoras, as pessoas estavam tornando-se muito radicais. Eu e meu pai entramos em conflito por causa dessa história. Ele tinha estudado teologia e achava que estávamos simplificando algo que era extremamente complicado. Ficamos discutindo esse assunto durante horas. Optamos, então, por deixar de tocar no assunto. A comunidade Shalom estava tornando-se cada vez mais intensa, havia reuniões freqüentes de preces e alguma pressão para todos que estivessem presentes. Era como se ganhássemos divisas por estarmos lá e quando não aparecíamos, começavam logo fazendo perguntas. Começou a deixar de fazer sentido.

Edge: Foi complicado tentar conciliar dois pontos indispensáveis e completamente opostos. Por um lado, tentamos ser os mais verdadeiros possíveis espiritualmente, e por outro lado fazemos parte da melhor banda de rock’n’roll que alguma vez existiu. Havia um elemento de incerteza ganhando terreno.

Larry: O objetivo era criar uma comunidade cristã, onde as pessoas vivessem e trabalhassem segundo padrões bastante rígidos. Quando se é novo e ingênuo, tudo isso parece fantástico. No entanto, havia algo de totalmente errado com o conceito. Era como se quanto maior fosse a obrigação que tivéssemos proposto, mais perto estaríamos do céu. Era uma visão muito alterada do mundo e não tinha nada a ver com o que agora entendo ser a fé cristã. Havia certa pressão para que seguíssemos aquele caminho e o mais estranho era que essa pressão não vinha da parte dos líderes da igreja, mas sim da parte de nossos amigos. Apesar de tudo, aprendi muito e adquiri uma fé que não possuía antes, e que consigo manter até hoje.

Bono: O Edge abandonou a banda. Mas não disse nada aos outros, só disse a mim e eu não estava interessado em continuar na banda se ele não estivesse lá. Ele me disse: “O que fazemos é fantástico, mas existe outro mundo lá fora e é dele que quero fazer parte. E a verdadeira cura para as doenças do mundo não reside em uma banda de rock post-punk, mas sim em nos desenvolvermos espiritualmente de forma a encontrar o nosso lugar e o objetivo de Deus para a nossa vida.” Nessa etapa, ele sentia que não podia servir simultaneamente a Deus a ao homem. Eu decidi que também não podia, por isso desistimos os dois.

Edge: Era uma bifurcação bastante clara na estrada. Eu queria examinar todo pormenor, queria descobrir se o que estávamos fazendo era ou não o caminho errado. Ouvíamos comentários negativos de pessoas que deviam ser nossas amigas, e nos dizendo que não podíamos continuar na banda, que não estava certo. E eu disse ao Bono: “Olha, eu renuncio disso com agrado se não for a escolha certa para nós, mas tenho que descobrir. Será que estas pessoas estão doidas ou sabem de alguma coisa que eu não tenha percebido?” O Bono compreendeu minha posição e achou que essa era a melhor forma de lidar com a situação, a encarou de frente. Ele também não estava interessado em ir em frente se não fosse a atitude mais sensata. Por isso, tirei um tempo para organizar as idéias na minha cabeça, que era de confiança. Achei que a resposta ia tornar-se clara, e isso aconteceu.

Larry: O Edge deixou a banda e eu deixei as reuniões.

Adam: O Bono e o Edge apareceram e disseram que estavam tendo certa dificuldade em chegar a um consenso sobre o que estava acontecendo com eles espiritualmente e sobre o que significava fazer parte de uma banda de rock’n’roll. Isso foi uma espécie de choque para mim, para o Steve Lillywhite e para o Paul, e então fizemos o que sempre fazemos em situações de crise: uma reunião. Ninguém tentou convencê-los a desistirem da idéia, mas o Paul fez uma interpretação pessoal do que eles estavam dizendo e falou: “É mesmo isso que vocês querem? Acreditam mesmo que vão se tornar mais eficientes se voltarem as suas vidas ditas normais? Ou acham que aproveitar essa oportunidade de fazer parte de uma grande banda de rock’n’roll vai, em longo prazo, ter mais valor?” O que quer que tenha acontecido depois, deu ao Bono, Edge e ao Larry determinação para sentirem que podiam terminar o disco.

Paul: Assumi uma posição de respeito perante as crenças de todos e esperava que eles também respeitassem as minhas, mesmo que não fossem as mesmas. E tem sido nessa base que temos trabalhado desde então. Fiquei verdadeiramente chocado quando eles me disseram que não ia ter turnê e que iam ficar em Dublin para fazer o trabalho de Deus. Eu disse: “Me dão um tempo para eu poder pensar nisso.” Sai do Windmill Lane Studios e dei uma volta no quarteirão. Quando voltei disse: “Sinceramente, se Deus tivesse alguma coisa a dizer sobre essa turnê, deveria ter erguido a mão bem mais cedo, pois já contratamos uma equipe de estrada e assumimos compromissos com as pessoas, no meu ponto de vista vocês têm a obrigação de cumprir.” E foi o final da discussão. Eles concordaram e a situação não se repetiu.

Bono: Foi difícil renunciar a banda, pois ambos adorávamos aquilo que fazíamos. Mas algo bastante forte aconteceu. Por vezes, temos que renunciar as coisas que gostamos para que as possamos ter. Sem querer parecer muito melodramático, é como Abraão que espera toda a vida por um filho e depois Deus diz que sacrifique Isaac. É das passagens mais cruéis da Bíblia. Mas, quando retornamos ao trabalho, parecia que ia ser ainda mais intenso. As idéias espirituais que pairavam no ar naquele momento eram muito profundas, muito pesadas. Cristo dizendo: “Quem achar a sua vida perdê-la-á.” É muito extremo. Sugere que se realmente queremos viver, não podemos nos agarrar à vida com muita força. Temos de renunciar, temos de nos render. Acho que não entendi muito bem na época, no meu zelo. Não queria que nada na minha vida interferisse entre mim e Deus, incluindo a música. Porque, como é obvio, podemos fazer de qualquer coisa um ídolo, não tem de ser o dinheiro, não tem de ser a fama – qualquer coisa pode se meter no caminho. A presunção, por exemplo. Alguns anos mais tarde compreendi de melhor forma tudo isso. Quando nos agarramos a algo com muita força, é como se já a tivéssemos perdido. Essa foi uma daquelas profundas verdades espirituais que levei muitos anos para descobrir. Ficamos fracos quando queremos muito alguma coisa. Quando renunciamos dela, nos tornamos muito mais fortes. E aconteceu algo durante esse momento em que renunciamos aquilo que quisemos toda a vida, aquilo que me mostrou o caminho para enfrentar o mundo novamente. Para mim, fazia sentido. Foi de certa forma, nesse álbum que o U2 disse: “Vamos onde for preciso. Quebraremos todas as regras da moda. Seremos emocionalmente crus, de forma a sermos honestos.” Mesmo após isso, íamos desistir da banda. Queríamos provar a todo custo que não poderíamos ser subornados pela nossa ambição. Acho que isso é algo incrível. Estivemos perto de desmoronar a banda, mas, ao mesmo tempo a recuperamos e ainda mais unida.

Edge: Era bastante claro que essa banda tinha algo de único e especial, era absolutamente falso sugerir que uma pessoa não possa ter uma vida espiritual legítima e estar no mundo do rock’n’roll ao mesmo tempo. Era algo completamente absurdo. Não digo que as pessoas envolvidas na comunidade Shalom fossem más, mas em uma dinâmica de grupo, as idéias às vezes ganham credibilidade quando não devem. Foi algo que era preciso enfrentar. Foi o começo do nosso desprendimento daquele sistema. De certa forma foi um enorme alívio para o Adam quando começamos nos afastar daquele grupo unido e passamos a confiar no nosso próprio parecer.

Bono: Desde cedo, sabíamos que não queríamos ser a banda que fala sobre Deus, mas depois fizemos um álbum que falou sobre pouco mais do que isso. A Patti Smith também lidava com esse assunto, assim como Bob Marley, Marvin Gaye e o Bob Dylan. Mas não havia muita gente querendo levantar essa pedra e ver os bichos rastejantes que estavam por baixo. A nossa vida espiritual pode ser tão desordenada como qualquer outra coisa das nossas vidas. Por isso, se é sobre ela que vamos cantar, o melhor é confessar as nossas fraquezas e vulnerabilidades.

Adam: Não tive grandes dificuldades com o aspecto da letra da música. Percebia que o rock’n’roll tinha uma base sentimental e uma base espiritual. Só não tinha certeza se isso era aceitável em uma banda New Wave, que é o que éramos. Nós fazíamos parte desse grupo. E não tinha certeza se daria resultado. Mas eu era um entusiasta da música. Esse era um disco rock e composto por um material muito interessante.

Edge: Fosse qual fosse o som que conseguíamos inventar que se aproximasse do espírito da música, o Bono só tinha que aceitar que era o melhor que conseguíamos fazer. Na época ele não tinha ilusões de nada. Sentia-se despedaçado, em diversos aspectos, por termos que terminar o álbum naquelas circunstâncias. Mas, dito isso, há algo de muito poderoso acontecendo. Acho que é a honestidade absoluta vindo por cima, pois são pessoas em uma situação de desespero. É algo que tem o poder de pedir intervenção divina, de pedir ajuda, qualquer coisa que nos ajudasse a lidar com a situação que nos encontrávamos.

Bono: Quis dar o nome de October ao álbum. O título veio antes da música. Era a idéia de que tínhamos nascido nos anos 60, na época em que o materialismo atingia seu ponto máximo. Tínhamos frigoríficos e carros, colocamos gente na lua e todos pensavam que a humanidade era o máximo. Mas os anos 80 foi um período mais frio. Materialismo sem qualquer idealismo, o sol sem calor, inverno. Foi após o outono, após as colheitas. Eu tinha a frase: October and the trees are stripped bare of all they wear. Aqui estou eu, com 22 anos, com a cabeça cheia de termos góticos, olhando para um mundo onde há milhões de desempregados e pessoas passando fome. E nós só usamos a tecnologia com a qual fomos abençoados para construir bombas maiores, para que ninguém desafie as nossas idéias fúteis. A cristandade nos diz que Deus está morto, mas eu penso que a cristandade é que morreu e nós fomos contratados para tocar no funeral. Pensamentos loucos. Os álbuns do Joy Division afetaram mesmo as nossas idéias. October é um título nefasto. A música em si é um trabalho meditativo e suave. O Edge ao piano, tocando umas notas gélidas, e a imagem da perda da inocência, o outono, as folhas caindo das árvores, e a pessoa fica exposta. Fiquei maravilhado durante essas sessões em que o Edge tocava piano. Nem sabia que ele era capaz. E ele também não!

Edge: Já não tocava piano desde criança. Desisti do piano quando tinha 12 anos para me dedicar à guitarra, mas ainda me lembrava de alguma coisa. Não sei onde surgiu o trabalho October, mas estava sentado ao piano. Foi para aí que fui transportado, para um rígido e cinzento, mas também bonito lugar europeu. Depois da turnê pela Europa, de ver Paris, Amsterdam, Berlim e Hamburgo durante o inverno, nunca me senti tão europeu. Teve um impacto bem forte em mim, tal quando vi Nova York pela primeira vez.

Larry: O álbum ficou bem melhor do que eu imaginava. Eu achava que as músicas eram boas, mas nós não sabíamos como terminá-las.

Paul: Este foi provavelmente o trabalho mais duro para a gravadora, pois não gostaram muito do disco. E também não gostaram muito da capa.

Bono: A capa foi culpa minha. Eu tinha uma ligação muito forte com Docklands em Dublin. O Windmill Lane ficava nas docas, e havia lá uma parte em particular que eu ia durante as gravações para tentar me inspirar. Era um lugar muito especial, tinha uma espécie de estética industrial. Havia alguma coisa naquela água. Agora é onde ficam os estúdios Hanover Quay, os nossos estúdios, e é também o centro da nova Dublin. Mas, na época, não havia qualquer sinal de vida. Apenas um cachorro chamado Skipper e um cara chamado George, que era o guarda. Creio que o instinto de fazer a sessão fotográfica lá estava certo, mas não teve o resultado esperado.

Larry: Embora não seja uma capa particularmente engenhosa nem inteligente, não tem qualquer pretensão. São apenas quatro caras com uns cortes de cabelo engraçados.

Adam: Não fazíamos idéia do que era sermos dirigidos ou estilizados para algo do gênero. Foi tudo muito básico, juntamos os quatro e tiramos uma fotografia. Na época o Bono gostava daquelas apresentações estilo anos 60, com uma margem em volta da fotografia e as listagens das músicas na frente. Muitas pessoas tentaram que mudássemos de idéia. Alguns representantes da Island Records falaram: “A capa é horrível.” Mas nós estávamos tão iludidos, que nem ligamos.

Edge: Foi então que o controle artístico do U2 veio em cima da gente e nos fez acordar. Realmente não é uma boa capa. Mas quando o cara do departamento de arte da Island foi tentar nos convencer a desistir, falamos que para nós o problema não era a capa, era o controle artístico. Estávamos desesperadamente tentando evitar que todos os controles criativos da Island nos dominassem. Mandamos o cara de volta para Londres e lhe dissemos que estava no contrato que a capa seria escolha nossa. Devo dizer que ele tinha toda a razão e teria sido melhor se o tivéssemos escutado. Mas, por outro lado, não teríamos usufruído do controle que possuíamos, por isso, no final das contas, talvez estivéssemos certos.

Paul: Nessa época, aconteceu uma mudança muito importante na dinâmica entre eu e a banda. Eu e o Adam operávamos quase como uma equipe de revezamento e colocávamos o restante dos membros da banda para fazerem outras coisas. Éramos de certa forma pessoas práticas e havia momentos que precisávamos chamar atenção dos outros três por motivos profissionais. Tentei explorar essa relação diversas vezes, pedindo ao Adam para os fazerem sentir alguma coisa, mas não me lembro o que era. E um dia o Adam me disse: “Não, e não me peça mais para fazer essas coisas. Eu sou um membro da banda e você o agente. Não vamos esquecer isso.” Era a pura verdade e também a coisa mais apropriada a dizer. Então eu parei.

Adam: Foi um período de muita incerteza em vários aspectos. O disco não estava tendo muita saída. O contrato que a Island Records tinha feito com os estúdios Warner Brothers na América estava prestes a acabar e por isso não havia grande força da parte deles e era complicado conseguir apoio para as turnês. As músicas não passavam nas rádios e por isso dependíamos apenas do “boca a boca”, coisa que também não estava acontecendo.

Edge: É, em vários aspectos esse foi o álbum mais estranho, mais confuso, e originou diferentes críticas. Teve uma boa saída no Reino Unido, mas em outros países não teve tanta aceitação como o Boy. Foi uma contrariedade. Naquele momento, acho que a Island colocou a hipótese de desistir de nós. O instinto do Chris Blackwell defendia que ainda havia mais coisas para acontecer, e que se fosse dada mais oportunidade à banda, poderíamos ir longe e que não tinha sido o nosso fim. Em relação a esse instinto, eles disseram: “Vamos tentar de novo.” É algo que provavelmente não teria acontecido em uma empresa maior e certamente não teria acontecido hoje, onde as bandas são abandonadas no primeiro sinal de perigo.

Paul: Se tivéssemos trabalhado com outra gravadora, creio que, certamente, teriam desistido de nós. Isso não aconteceu, mas nós sabíamos que tínhamos que melhorar se quiséssemos sobreviver.

* Páginas 114, 145, 121, 122 e 123 - Fotos

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